Um amor
Imortal
Todos os dias, o moço
simples, de sorriso largo e olhar romântico caminha durante algum tempo por
aquela estradinha deserta e solitária como o cemitério abandonado, único
habitante por ali existente. É o caminho entre a roça de milho e sua choupana,
situada num vilarejo, bem mais adiante.
Num final de tarde
escaldante de verão, vinha devagar, como de costume, expressando no rosto um
misto de cansaço e sossego, por aquela estrada quase coberta pelo mato alto e
espinhento, quando sentiu uma fisgada em seu tornozelo. Assustado, agachou-se e
viu aquela mancha arroxeada, e logo identificou a picada de uma coral, cobra
típica da região.
E agora? Eram quilômetros
até se chegar a uma cidadezinha, onde havia um lugar, que as poucas pessoas que
ali viviam, as quais vizinhavam com ele, chamavam de hospital. Estava perdido.
O tempo passava. Um
mal-estar terrível já percorria seu corpo.
Uma nuvem negra já quase
cobria sua visão, quando um carro muito antigo, de um ou dois séculos passados,
lento, esmagando o mato, aproximou-se devagar.
Parecia-lhe um sonho – ou
um pesadelo? - Seria um milagre? Ou um delírio?
Com a visão turva, mal
podia ver o rosto da moça que conduzia o veículo, mas podia sentir passeando em
sua face aqueles cachos longos, dourados e perfumados, quando ela tentava com
esforço colocá-lo dentro do carro. Ouviu, num fio de voz, como se estivesse
muito longe, ela dizer seu nome: Angélica. E, no delírio dos solavancos do
carro, na estradinha, o nome se repetia, num eco interminável: Ang...Angel... Angel...Angélica...
Angélica...
Não se lembra de mais
nada.
Acorda, muitas horas – ou dias
- depois, no quarto de um sobrado antigo, que diziam ser um hospital, o qual
abrigava um médico, uma enfermeira e alguns móveis e utensílios indispensáveis
para atender alguma eventual emergência. Ouve a enfermeira e o médico ao pé do
leito, comentando que ele aparecera no portal do sobrado, junto ao tronco da
enorme árvore que servia de cicerone e dava as boas-vindas a quem chegasse ao
local. Falavam, também, que ninguém sabia explicar como ele teria chegado ali;
e quem o havia trazido. Por sorte ele estava salvo da morte.
Imediatamente, perguntou
por Angélica. Mas nem o médico, nem a enfermeira sabiam quem era a tal moça de
cachos de ouro, tão bem descritos pelos olhos anuviados e o coração apaixonado
do moço.
Não, não era delírio! Ela
estivera com ele, salvara sua vida. E o perfume e a suavidade dos cabelos
permaneciam com ele. Não era delírio, não! Ele sentira seu toque, os solavancos
do carro...
Aonde teria ido? Quem era
ela?
Não tinha por onde começar
a procura.
Não tinha o que fazer a
não ser voltar, resignado, a sua rotineira caminhada diária, da choupana para a
roça, da roça para a choupana – agora com botas protetoras de borracha, apesar
do calor insuportável, que parecia rasgar a pele e penetrar na carne.
Todas as manhãs, quando
abria os olhos, despontava na sua lembrança o toque daquela moça misteriosa,
irreal e tão real que o perfume dos cachos havia impregnado em sua alma, ao
ponto de ele desejar ardentemente senti-la e tocá-la outra vez. Disto não tinha
a menor dúvida: estava inteiramente apaixonado!
Depois de algum tempo, tudo
volta quase ao normal.
Um dia estonteante de
calor, normal para aquela época do ano e para o lugarejo de clima tropical, no
caminho de volta da roça, ao passar pelo cemiteriozinho abandonado, vê um
clarão, uma luz intensa vinda do meio de uma touceira de flores silvestres,
nascidas ali por mero acaso. Meio receoso, mas muito curioso e movido por uma
força estranha, adentrou o lugar.
Andou, parou...Andou mais
um pouco, parou outra vez...Retomou o passo, pensou na moça...E...
Estarreceu diante de uma
lápide, já em boa parte tomada pela destruição do tempo, mas que, ainda, com
certo empenho, era possível ler um nome, para ele, tão familiar: Angélica.
Com as mãos, limpou a
casca limosa que cobria parte da lápide
e pôde ver nitidamente os longos cabelos em cachos dourados, os quais revelavam
aquele lindo rosto da moça que o salvara da morte e pela qual se apaixonara,
pregado naquela lápide fria, que datava mais ou menos do tempo daquele carro
que agora, mais do que nunca, sabia que
existia, pois estava ali, parado na sua frente.
Rodopiou, caiu, levantou,
esfregou os olhos para ter a certeza de que a cena que via era real, e seus olhos
viram o que há tempo queria ver: De dentro do carro acenava um Anjo, seu Anjo, Angel...a sua amada Angélica.
A porta se abriu, Ele se
aproximou. Entrou. Fechou a porta.
Aspirou outra vez o
perfume daqueles cabelos cacheados, sentiu-os roçando sua face...Anjo, Angel, Angélica!
Os solavancos, dessa vez,
pareciam desesperados cupidos que aproximavam seus corpos quentes e sedentos de
desejos um pelo outro.
Jussára C
Godinho
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Força e Coragem, uma Nova Vida está
aí...
Jussára C Godinho
Na sala de espera do hospital,
aquela pobre mãe aguardava ansiosa por aquele momento. Afinal, há nove meses
sua filha estivera com ela, que mesmo cansada de tanto trabalho e de tantos dissabores
da vida, ainda arranjara energia para entregar e cuidar com carinho e esmero de
seu rebento.
O silêncio daquela sala e
a tensão do momento traziam imagens de anos atrás, quando a protagonista da
cena era ela trazendo ao mundo a filha que hoje estava lá para dar a luz a outra
vida. Era ainda tão menina!
Tantos sonhos...Tantos
planos...Tantos sonhos...Tantas ilusões...Nunca imaginara que um dia a filha querida
e protegida que tanto amara, que dedicara inteiramente todos os seus dias até
então, pudesse estar ali, sozinha, insegura, vulnerável aos percalços que um
parto oferece.
Há quanto tempo já estava
ali? O tic-tac do relógio misturava-se com as batidas de seu coração, que, às
vezes, parecia explodir, e outras, sumia sem explicação. Como seria agora?
Teria forças para seguir? Sabia que não seria fácil o que estava por vir.
Ouve a voz daquele médico,
velho amigo, chamando-a para dizer que era necessário um parto cesáreo, mãe e
filha estavam sofrendo muito! E, sem titubear, sem pensar como daria conta das
despesas, a pobre mãe disse, imediatamente:
-Não as deixe sofrer nem
um segundo, faça tudo o que for necessário!
Ouve a voz do médico,
dessa vez, era a voz do pediatra, dizendo “todos os reflexos são nota dez”. Ela
tinha saúde, muita saúde, isso era o mais importante, e era linda, uma boneca
viva, uma princesa, mais uma vida vinda da sua vida.
Ficou durante horas -
nunca soube quantas, perdera totalmente a noção do tempo - amassando o nariz e
o coração atrás do vidro da janela do berçário para observar e se deliciar com
aquele rostinho que, mesmo de longe, já se mostrava impetuoso, transformando-a
em avó.
Tudo bem, agora era só
verificar a parte prática: honorários do hospital e dos médicos (quanto tempo
dedicado ao trabalho árduo para conseguir juntar alguma coisa), horários de
visitas, lanches, flores, fotos...
Medos, inseguranças, ilusões,
sonhos...
Mais um ser no mundo, mais
uma mulher...
Três mulheres: mãe, filha
e filha-neta buscando uma na outra o que desistiram de encontrar nos homens, o
verdadeiro amor no coração e a coragem de serem verdadeiramente pais!
Nov 2006
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Núpcias
Jussára C Godinho
Subia, lentamente, a
escadaria da Igreja como se estivesse andando em direção ao céu, ao encontro do
Paraíso. No seu vestido branco de cetim, envolta num fino véu que cobria seu
rosto, seu olhar brilhante, cheio de esperança e de alegria revelava o quanto
seu coração estava feliz. As rosas vermelhas em suas mãozinhas finas e
delicadas pareciam tremer de emoção ao chegar à enorme porta de mármore. Parada,
o olhar buscando ansioso seu bem-amado, anjo azul que a envolveria numa nuvem branca
de felicidade, deixa seu sorriso à mostra como que expondo um lindo colar de
pérolas raras. Momento sublime, sensação de que nada, absolutamente nada,
poderia interferir nesse encontro marcado com a felicidade.
Tudo
em ordem. A
aia com seu vestidinho esvoaçante - tão cor de rosa como a vida que acreditava
estar a sua espera lá fora - quase corria com uma cestinha ornamentada de fitas,
que carregava as duas alianças de ouro, brilhantes, faiscando, como se
soubessem que elas eram as protagonistas da festa.
Aquele
caminho parecia infinito, tamanha era a sua ansiedade em chegar lá. Flores
vermelhas, como o fogo daquele amor, enfeitavam os espaços vazios, preenchendo
com graça e leveza todas as lacunas. O perfume exalando nos corações
apaixonados, trazia a certeza de que aquele momento estava eternizado.
A entrega, o beijo, a
promessa, tudo em seus devidos lugares. A volta, de braços dados, tudo
consumado, nada de errado. Nas imagens, tudo registrado.
A
valsa soando calma fazia deslizar, no simples salão com chão de madeira, aquele
anjo branco, virgem imaculada, com sua coroa de flores envolvendo seus cabelos
encaracolados e revelando, sem pedir permissão, sua pureza e ingenuidade.
Sua
vida, daquele momento em diante, seria um mar azul de flores, valsas, perfumes,
véus esvoaçantes, misturando-se com o caminhar das nuvens...???
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Volta ao Passado
Jussára C Godinho
Era uma tarde, dessas
tardes frias de inverno sulino, em que alguns raios de sol insistentes rasgam
as nuvens densas de um céu meio cinzento.
Andando por aquelas ruas, resolvi
parar. Mostraria o lugar a minhas filhas.
- Meu Deus! Há quanto
tempo! Tudo tão diferente.
Aqui neste lugar deixara
parte de mim. Aquela menininha magricela de cabelos encaracolados e tão longos
quanto a sua ingenuidade ficara perdida ali, quem sabe sentada naquela pedra
debaixo do abacateiro, lá longe, no fundo do quintal.
Melancólica – Ou triste? –
percebi que nada mais era igual. A rua, agora asfaltada, escondia aquela que
tantas vezes percorrera. As casas, todas diferentes: outras formas, outras cores, outras pessoas.
-Ah! Aquela vizinha! (Como
era mesmo o nome dela?) Onde andará? O que terá acontecido com ela? E seus
filhos? Terão sido felizes?
Ali correm crianças,
outras crianças, outro tempo. Onde estarão essas crianças daqui a trinta anos?
Trinta anos...Uma vida...
Tudo diferente, tudo
transformado. Nada mais igual. E eu?
Perdida nesses
pensamentos, com o coração transbordando de lembranças, umas atropelando as
outras, parei ao vê-lo tão exuberante, tão único, tão igual, acenando suas
folhas verdes como se estivesse me reconhecendo. Era ele! Aquele abacateiro que
morava no fundo do meu quintal. Sozinho. Como eu? Onde estaria aquela pedra?
Ele era a única coisa que sobrara. E aquelas flores em meio ao mato crescido
naquela imensidão vista pelos meus olhos de menina? O quintal parecia tão
longe! E agora via-o tão perto! Ah, os olhos de criança!
Lágrimas brotaram de meus
olhos adultos e ...Rolaram como há muito não acontecia.
E o abacateiro permanecia
ali, acenando, real, prova concreta e viva de que por ali eu havia passado,
minha infância deixado, e, como ele, somente eu havia sobrado.
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